
Por Hugo Funaro* — A Emenda Constitucional 132/2023 reformulou a tributação sobre o consumo no Brasil, criando o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição ao ICMS, ISS, PIS e Cofins.
Para suavizar a transição ao novo modelo, a União comprometeu-se a compensar financeiramente as empresas pelas perdas decorrentes da redução de certos benefícios onerosos de ICMS, como aqueles voltados à atividade industrial. O objetivo é preservar a segurança jurídica e fomentar o desenvolvimento regional, evitando que a perda abrupta de incentivos estaduais prejudique empreendimentos que deles dependem para manter suas operações.
Três grupos de beneficiários da compensação foram definidos: (1) titulares de benefícios convalidados pela LC 160/2017 e concedidos até 31/5/2023; (2) empresas que migraram para outros programas entre 31/5/2023 e 20/12/2023; e (3) projetos automotivos incentivados pela União, nos termos no art. 11-C da Lei 9.440/1997 e nos arts. 1º a 4º da Lei 9.826/1999, com a finalidade de estimular o desenvolvimento das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Como não foi fixado prazo final para a concessão de benefícios de ICMS às empresas do setor automotivo detentoras dos incentivos federais mencionados, elas têm direito de ser compensadas financeiramente, inclusive, por novos benefícios estaduais obtidos até o final do período de transição para o IBS (31/12/2032).
Tal tratamento diferenciado se justifica para atender aos objetivos constitucionais de redução das desigualdades regionais e sociais: de um lado, trata-se de empreendimentos com alto potencial de geração de novas receitas, tributos e empregos, notadamente em razão da intersecção de fluxos econômicos associados à cadeia de suprimentos; de outro, os incentivos são essenciais para contrabalancear os maiores custos de produção e logísticos suportados por empresas localizadas em regiões distantes dos grandes centros consumidores.
No entanto, a Lei Complementar 214/2025, ao regulamentar o mecanismo de compensação financeira, ignorou essa peculiaridade e só autorizou a Receita Federal do Brasil a habilitar benefícios de ICMS concedidos até 31/5/2023 ou migrados até 20/12/2023, excluindo da compensação as empresas do setor automobilístico detentoras de incentivos federais regionais que tenham obtido — ou venham a obter — benefícios de ICMS após as referidas datas. Com isso, os pedidos de compensação tendem a ser indeferidos por ausência de amparo legal, comprometendo a competitividade e a viabilidade de empreendimentos fundamentais para o desenvolvimento de diversas regiões do país.
A limitação imposta pela LC 214/2025 é inconstitucional. O papel da lei complementar é disciplinar como a compensação será feita —apuração de valores e procedimentos formais para habilitação do requerente — e não definir quem tem direito a ela, pois isso já está estabelecido na Constituição.
Além disso, a ausência de recomposição integral das perdas sofridas por empresas do setor automotivo que gozam de incentivos federais, em decorrência da transição do ICMS para o IBS, prejudica a efetividade de políticas de desenvolvimento regional(CF, arts. 3º e 151, I) e viola o princípio da isonomia (CF, arts. 5º e 150, II), ao tratar de forma desigual empresas que se encontram em situação jurídica e econômica equivalente.
Ainda, a restrição da compensação de benefícios estaduais para empresas habilitadas a receber crédito presumido de CBS destinado à produção de veículos menos poluentes (elétricos, híbridos, a biocombustível ou flex), em regiões menos desenvolvidas, contraria o princípio tributário da proteção ambiental (CF, arts. 145, §3º e 225, VIII). Parte do incentivo federal da CBS fatalmente seria consumida para mitigar o aumento da carga tributária decorrente da perda do benefício estadual, enfraquecendo o estímulo à produção de veículos sustentáveis. Em outras palavras, a União tiraria com uma mão o que concedeu com a outra.
Diante disso, é recomendável que o Congresso Nacional revise o texto da LC 214/2025 para incluir, entre os legitimados, à compensação financeira, os titulares de incentivos federais previstos no art. 11-C da Lei nº 9.440/1997 e nos arts. 1º a 4º da Lei nº 9.826/1999, independentemente da data de concessão do benefício estadual — desde que respeitado o termo final de fruição (31/12/2032). Essa medida evitaria judicialização e atenderia aos princípios que nortearam a reforma (segurança jurídica, neutralidade, simplicidade, proteção ambiental), preservando investimentos essenciais para o desenvolvimento nacional equilibrado.
Sócio do Dias de Souza Advogados Associados, é mestre em direito econômico e financeiro pela USP*
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